terça-feira, 21 de outubro de 2014

A bênção dos desentendidos




– Temos que concordar que esta humana tinha uma vista bastante grossa, Chofer – indaguei casualmente.
– Ou o coração muito fino à ponto da sensibilidade valer por óculos – replicou o Ceifador. 

Vistas grossas ou não, a jornalista não carecia de comprar utopia alguma, pois a esperança que criara dentro de si durante sua mortal vivência a acompanhava em tudo sempre onde se podia estar. Este tipo de fé está além da nossa compreensão divina. É a necessária ignorância que todo ser necessita ter. Quando se conhece de tudo e se é imortal, deixa de acreditar em forças paralelas e se torna menos esperançoso justamente pela certeza (a consciência) que se tem do todo. Imortais somos nós, mas infinito, isso só Carolina conseguira ser. O que demoramos a compreender é que ainda que imaginário, a fé humana é a principal responsável pelas forças externas do homem. Concluindo isso, eu e o Ceifeiro resolvemos prosseguir com a história.

(Fragmento - diálogo do Arcanjo com o Ceifeiro)

domingo, 21 de setembro de 2014

Pontualidade do indigesto


São treze horas, os olhos abrem, mas o corpo não. Eles mexem e lá se escorre o almoço. Agora, contra o ronco genético dos homens, me banqueteio com as vitaminas de numerosas faces e letras. 

Atraso, mas corro, quase atropelando as pernas e testando impiedosamente a potencialidade do Clínical diante dos mais variados climas destas ladeiras de asfalto. Respiro e imploro, no raro momento cristão, pelo ônibus, que sufocado de gente cospe passageiros e suor a cada parada. Ele chega, mas eu não. Ele atrasa e eu também. Faço orações para que suas rodas voem pelas avenidas populares. É nesse instante, querido leitor, que por vezes é bom ter religiosidade, pois ela sempre auxilia quando o perigo se torna iminente.

Sinto-me hipócrita e oportunista, mas já no primeiro degrau trato de agradecer a recompensa, pra não correr o risco de ser acusado de ingrato. Livro-me desse adjetivo. É tudo questão de instinto e rótulo. Antes da roleta, já no encosto do vidro cimentado por ombros, coloco a culpa no acaso e lá se foram minhas hipocrisias e religiosidades, lançadas no mesmo ralo. Amanhã corro o risco de sofrer uma vingança divina melhor elaborada, no entanto, estou vivendo o hoje e isso é o que interessa. Escapei mais uma vez do juízo. Chego! 

São tantos pares de olhos curiosos que metralham os corpos que passam pelos corredores das aprovações. É aqui que me encontro. Ai de você, leitor, se não usar o uniforme e status durante seu desfile na passarela dos espiões, correrá sérios riscos de quebrar as ligações do ator com a peça. Será julgado pelos espectadores e do seu futuro só garanto o exílio. Banido! Saia logo daqui.

É sabido que não se pode olhar para a câmera durante a encenação e nem deixar nascer alguma possibilidade do seu telespectador perceber que sua atuação é uma mera arte. Não se conversa com o ouvinte, caro leitor. Digo, não se conversa com o ouvinte. Cuidado! Apresso o passo, passo por apressado e por aqui passo.

De onde vem o calor que instiga os olhos dos jurados? E essa curiosidade com recursos de sonar e etiqueta? Achou mesmo que eu me esqueceria do sonar humano? Você é lido e estudado desde a primeira aparição até a última fala. E questiono mais; é medo ou indiferença que recheia os seres quando confrontam o que não conhecem?

Enxugo a testa e respondo por mim; Não! Se me permite dizer, não os conheço e aqui fica a minha indiferença. Onde está a sua? E onde eu estava?  - Ah! Sim! Agora profanando a santidade das salas de aula. Em minutos, na banguela das escadas.

Prossigo, arrastando os joelhos violentamente extintos e dando movimento a estrada ameaçadora dos intelectos e estudiosos. Assistindo de longe, qualquer estranho dirá que conspiro contra. Quem? Eu? “Pertencem á moda... mas não são donos de si”, as atuações não nasceram dos próprios, foram compradas pela necessidade de ter munição para atirar junto à fala e gestos.

Enquanto julgo, o relógio físico se manifesta e lá estou na interminável fila da janta, diante do clamor alheio e do tumulto das bandejas e pratos e copos e talheres e ecos dos fartos e alimentados cidadãos privilegiados. Hoje a carne é de frango.

Justamente no auge da curiosidade, torno-me farto do todo. Sento, finjo entender o discurso poético da despedida e, visto o quanto bastava para um dia, sou chamado de volta pelo relógio da fadiga. Alívio, (agora) recebo a permissão para respirar.

Recebo minhas doses de afago ao sentir o clima frio, sou poupado das preocupações hormonais. O instrumento Clínical agradece e essa ansiedade também. Quem não concorda muito com esse enredo talvez não me queira bem, mas não preciso saber quem. Lá se foram cinqüenta minutos em namoro com uma cadeira silenciosa. Deixo minha cena, me encaminho ao obscuro.

Outra vez ao mar, outra vez sem par, mas dessa vez navega rumo ao lar, os pensamentos. Agora se encontram intocáveis, infinitos. São vinte e três horas, os olhos não fecham porque o corpo sente a noite. É aí que entra o “meu”, no estreito intimo entre o silêncio dos que dormem e o sussurro dos que se escondem. 

Rude, febril e cegamente consumido por inúmeras tentativas de profetizar com a caneta. Batalho com o último morro, na última esquina, por uma última vitória. E lá se vai, lá se foi, fui. Já entrei em meus domínios, já reconheço as escadas, estou lúcido, daqui pra frente tudo que enxergar será de meu pertence. Fecho a porta, suspiro e me torno tudo que poderia ser, sou enquanto estou sendo. Nunca pontual. 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Necessidades




   
- Doutor, estou me despedindo do senhor e agradecendo a companhia desses últimos meses. O que não disse a respeito das pessoas e dos seus relacionamentos me fizeram um enorme sentido quando passei a viver do que quase foi escrito. Acredita, doutor? Por que raios meus óculos não funcionam quando necessito enxergar sem o meu coração?

- Pasmem, James! Talvez você precise daquelas pílulas que te receitei semana passada, ou trocar o seu relógio por um daqueles que não marquem por batimento cardíaco.

- Talvez, doutor. Acontece que tenho escutado tantas histórias lá na minha rua que penso que os numerosos conceitos sobre a cura humana e suas felicidades estão me medicando contra toda a sombra da saudade e a solidão que invento.

- O que você sente, James, quando resolve olhar com os ouvidos?

- Escute bem, doutor, porque posso me esquecer dessa receita quando me apaixonar de forma enganosa. Conheci uma senhora que dizia saber o que era o amor e qual a sua função nesta vida. Ela sussurrou, como se esse fosse um segredo que só se pode revelar a quem lhe rouba as horas, sem você cobrar por isso. Levantando o seu indicador e espremendo os olhos, ela afirmou: “James, não se torture tanto pelas cobranças do coração e pelo amor não sentido. Amar é como se houvesse um roteiro escrito por improviso, é como se cativar fosse tão simples e puro que não requer treino algum, apenas a vivência.

- Não pude entendê-la apenas com essa resposta, doutor. Tirei minhas dúvidas ali mesmo: “É igual ser feliz quando se é criança?” - Questionei. “É muito melhor, garoto!”– Respondeu a senhora. “A felicidade daquele que ama, e sabe o que é o amor, não vem só dos olhos, vem da alma, do desejo de quem escolhe adotar os defeitos alheios sem a simples inocência de uma criança, que julga feliz por não saber o que é tristeza” – concluiu assim o seu pensamento.

- Meu caro James, imagino que você esteja aprendendo mais com os outros do que com você mesmo.

- Não sei doutor, mas acredito que quando se é dois, torna-se muitos e estes muitos vivem apenas por um, o outro. É o pouco que se torna necessário e transborda.

- Espero que finalmente você consiga compreendendo a importância de ser natural, James. Essa senhora certamente tem muita a te ensinar sobre os sentimentos e o autocontrole.


- Talvez um dia, doutor. Essa curiosidade se perpetuará daqui pra frente. Ela morrera de amor semana passada. Dizem os vizinhos que a pobre não suportou encher a barriga só de conselhos. O que acha Doutor?  Doutor? 

domingo, 22 de junho de 2014

Curiosos casos



As vezes pensamos em todo o ciclo de uma vida humana e as diferentes verdades que se esquivam ou se aproximam à medida em que escolhemos uma forma de viver, que conhecemos alguém ou simplesmente mudamos o nosso caminho na volta para a casa. Os segundos que separam um encontro, um anonimato e, das intermináveis variedades de acasos que só não acontecem por não sabermos o que nos espera, ou apenas por já termos algo a que esperar. 

Como pode a vida ser tão flexível assim?   
Como podemos ser tão diferentes do que somos, quando não                     dependemos apenas de nós mesmos?   


Nessas horas tudo me indica que existir é, além de respirar, uma constante adaptação com o espaço ao nosso redor, uma grande roda movida a combustível humano, feita de histórias que aconteceram da melhor forma entre as possíveis. Talvez seja correto dizer que a felicidade caminha ao nosso lado, esperando ser escolhida pelos nossos descuidos aleatórios ou ideais egoístas (destino?). O conceito de próximo é definido não só pelos olhos, mas pelo trajeto que escolhemos pra nós, mesmo sem saber o por quê. Por que?