domingo, 21 de setembro de 2014

Pontualidade do indigesto


São treze horas, os olhos abrem, mas o corpo não. Eles mexem e lá se escorre o almoço. Agora, contra o ronco genético dos homens, me banqueteio com as vitaminas de numerosas faces e letras. 

Atraso, mas corro, quase atropelando as pernas e testando impiedosamente a potencialidade do Clínical diante dos mais variados climas destas ladeiras de asfalto. Respiro e imploro, no raro momento cristão, pelo ônibus, que sufocado de gente cospe passageiros e suor a cada parada. Ele chega, mas eu não. Ele atrasa e eu também. Faço orações para que suas rodas voem pelas avenidas populares. É nesse instante, querido leitor, que por vezes é bom ter religiosidade, pois ela sempre auxilia quando o perigo se torna iminente.

Sinto-me hipócrita e oportunista, mas já no primeiro degrau trato de agradecer a recompensa, pra não correr o risco de ser acusado de ingrato. Livro-me desse adjetivo. É tudo questão de instinto e rótulo. Antes da roleta, já no encosto do vidro cimentado por ombros, coloco a culpa no acaso e lá se foram minhas hipocrisias e religiosidades, lançadas no mesmo ralo. Amanhã corro o risco de sofrer uma vingança divina melhor elaborada, no entanto, estou vivendo o hoje e isso é o que interessa. Escapei mais uma vez do juízo. Chego! 

São tantos pares de olhos curiosos que metralham os corpos que passam pelos corredores das aprovações. É aqui que me encontro. Ai de você, leitor, se não usar o uniforme e status durante seu desfile na passarela dos espiões, correrá sérios riscos de quebrar as ligações do ator com a peça. Será julgado pelos espectadores e do seu futuro só garanto o exílio. Banido! Saia logo daqui.

É sabido que não se pode olhar para a câmera durante a encenação e nem deixar nascer alguma possibilidade do seu telespectador perceber que sua atuação é uma mera arte. Não se conversa com o ouvinte, caro leitor. Digo, não se conversa com o ouvinte. Cuidado! Apresso o passo, passo por apressado e por aqui passo.

De onde vem o calor que instiga os olhos dos jurados? E essa curiosidade com recursos de sonar e etiqueta? Achou mesmo que eu me esqueceria do sonar humano? Você é lido e estudado desde a primeira aparição até a última fala. E questiono mais; é medo ou indiferença que recheia os seres quando confrontam o que não conhecem?

Enxugo a testa e respondo por mim; Não! Se me permite dizer, não os conheço e aqui fica a minha indiferença. Onde está a sua? E onde eu estava?  - Ah! Sim! Agora profanando a santidade das salas de aula. Em minutos, na banguela das escadas.

Prossigo, arrastando os joelhos violentamente extintos e dando movimento a estrada ameaçadora dos intelectos e estudiosos. Assistindo de longe, qualquer estranho dirá que conspiro contra. Quem? Eu? “Pertencem á moda... mas não são donos de si”, as atuações não nasceram dos próprios, foram compradas pela necessidade de ter munição para atirar junto à fala e gestos.

Enquanto julgo, o relógio físico se manifesta e lá estou na interminável fila da janta, diante do clamor alheio e do tumulto das bandejas e pratos e copos e talheres e ecos dos fartos e alimentados cidadãos privilegiados. Hoje a carne é de frango.

Justamente no auge da curiosidade, torno-me farto do todo. Sento, finjo entender o discurso poético da despedida e, visto o quanto bastava para um dia, sou chamado de volta pelo relógio da fadiga. Alívio, (agora) recebo a permissão para respirar.

Recebo minhas doses de afago ao sentir o clima frio, sou poupado das preocupações hormonais. O instrumento Clínical agradece e essa ansiedade também. Quem não concorda muito com esse enredo talvez não me queira bem, mas não preciso saber quem. Lá se foram cinqüenta minutos em namoro com uma cadeira silenciosa. Deixo minha cena, me encaminho ao obscuro.

Outra vez ao mar, outra vez sem par, mas dessa vez navega rumo ao lar, os pensamentos. Agora se encontram intocáveis, infinitos. São vinte e três horas, os olhos não fecham porque o corpo sente a noite. É aí que entra o “meu”, no estreito intimo entre o silêncio dos que dormem e o sussurro dos que se escondem. 

Rude, febril e cegamente consumido por inúmeras tentativas de profetizar com a caneta. Batalho com o último morro, na última esquina, por uma última vitória. E lá se vai, lá se foi, fui. Já entrei em meus domínios, já reconheço as escadas, estou lúcido, daqui pra frente tudo que enxergar será de meu pertence. Fecho a porta, suspiro e me torno tudo que poderia ser, sou enquanto estou sendo. Nunca pontual.